Escrito por Rafael Chiuzi
Sex, 04 de
Março de 2011 17:14
http://migre.me/dLjHO
Nos últimos anos, três
ferramentas de gestão estiveram na base de uma transformação radical da maneira
como trabalhamos: a avaliação individual do desempenho, a exigência de
“qualidade total” e o outsourcing. O fenómeno gerou doenças mentais ligadas ao
trabalho. Christophe Dejours, especialista na matéria, desmonta a espiral de
solidão e de desespero que pode levar ao suicídio.
Psiquiatra, psicanalista e
professor no Conservatoire National des Arts et Métiers, em Paris, Christophe
Dejours dirige ali o Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Acção – uma das
raras equipas no mundo que estuda a relação entre trabalho e doença mental.
Esteve há dias em Lisboa, onde, de gravata amarela, cabeleira “à Beethoven” e
olhos risonhos a espreitar por detrás de pequenos óculos de massa redondos,
falou do sofrimento no trabalho. Não apenas do sofrimento enquanto gerador de
patologias mentais ou de esgotamentos, mas sobretudo enquanto base para a
realização pessoal. Não há “trabalho vivo” sem sofrimento, sem afecto, sem
envolvimento pessoal, explicou. É o sofrimento que mobiliza a inteligência e
guia a intuição no trabalho, que permite chegar à solução que se procura.
Claro que no outro extremo da
escala, nas condições de injustiça ou de assédio que hoje em dia se vivem por
vezes nas empresas, há um tipo de sofrimento no trabalho que conduz ao
isolamento, ao desespero, à depressão. No seu último livro, publicado há uns
meses em França e intitulado Suicide et Travail: Que Faire? , Dejours aborda
especificamente a questão do suicídio no trabalho, que se tornou muito
mediática com a vaga de suicídios que se verificou recentemente na France
Télécom.
Depois da conferência, o médico e
cientista falou com o P2 sobre as causas laborais desses gestos extremos, trágicos
e irreversíveis. Mais geralmente, explicou-nos como a destruição pelos gestores
dos elos sociais no trabalho nos fragiliza a todos perante a doença mental.
O suicídio
ligado ao trabalho é um fenómeno novo?
O que é muito novo é a emergência
de suicídios e de tentativas de suicídio no próprio local de trabalho. Apareceu
em França há apenas 12, 13 anos. E não só em França – as primeiras
investigações foram feitas na Bélgica, nas linhas de montagem de automóveis
alemães. É um fenómeno que atinge todos os países ocidentais. O facto de as
pessoas irem suicidar-se no local de trabalho tem obviamente um significado. É
uma mensagem extremamente brutal, a pior do que se possa imaginar – mas não é
uma chantagem, porque essas pessoas não ganham nada com o seu suicídio. É
dirigida à comunidade de trabalho, aos colegas, ao chefe, aos subalternos, à
empresa. Toda a questão reside em descodificar essa mensagem.
Afecta
certas categorias de trabalhadores mais do que outras?
Na minha experiência, há
suicídios em todas as categorias – nas linhas de montagem, entre os quadros
superiores das telecomunicações, entre os bancários, nos trabalhadores dos
serviços, nas actividades industriais, na agricultura.
No passado, não havia suicídios
ligados ao trabalho na indústria. Eram os agricultores que se suicidavam por
causa do trabalho – os assalariados agrícolas e os pequenos proprietários cuja
actividade tinha sido destruída pela concorrência das grandes explorações.
Ainda há suicídios no mundo agrícola.
O que é que
mudou nas empresas?
A organização do trabalho. Para
nós, clínicos, o que mudou foram principalmente três coisas: a introdução de
novos métodos de avaliação do trabalho, em particular a avaliação individual do
desempenho; a introdução de técnicas ligadas à chamada “qualidade total”; e o
outsourcing, que tornou o trabalho mais precário.
A avaliação individual é uma
técnica extremamente poderosa que modificou totalmente o mundo do trabalho,
porque pôs em concorrência os serviços, as empresas, as sucursais – e também os
indivíduos. E se estiver associada quer a prémios ou promoções, quer a ameaças
em relação à manutenção do emprego, isso gera o medo. E como as pessoas estão
agora a competir entre elas, o êxito dos colegas constitui uma ameaça, altera
profundamente as relações no trabalho: “O que quero é que os outros não
consigam fazer bem o seu trabalho.”
Muito rapidamente, as pessoas
aprendem a sonegar informação, a fazer circular boatos e, aos poucos, todos os
elos que existiam até aí – a atenção aos outros, a consideração, a ajuda mútua
– acabam por ser destruídos. As pessoas já não se falam, já não olham umas para
as outras. E quando uma delas é vítima de uma injustiça, quando é escolhida
como alvo de um assédio, ninguém se mexe…Mas o assédio no trabalho é novo?
Não, mas a diferença é que,
antes, as pessoas não adoeciam. O que mudou não foi o assédio, o que mudou é
que as solidariedades desapareceram. Quando alguém era assediado, beneficiava
do olhar dos outros, da ajuda dos outros, ou simplesmente do testemunho dos
outros. Agora estão sós perante o assediador – é isso que é particularmente
difícil de suportar. O mais difícil em tudo isto não é o facto de ser
assediado, mas o facto de viver uma traição – a traição dos outros. Descobrimos
de repente que as pessoas com quem trabalhamos há anos são cobardes, que se
recusam a testemunhar, que nos evitam, que não querem falar connosco. Aí é que
se torna difícil sair do poço, sobretudo para os que gostam do seu trabalho,
para os mais envolvidos profissionalmente. Muitas vezes, a empresa pediu-lhes
sacrifícios importantes, em termos de sobrecarga de trabalho, de ritmo de
trabalho, de objectivos a atingir. E até lhes pode ter pedido (o que é algo de
relativamente novo) para fazerem coisas que vão contra a sua ética de trabalho,
que moralmente desaprovam.
Qual é o
perfil das pessoas que são alvo de assédio?
São justamente pessoas que
acreditam no seu trabalho, que estão envolvidas e que, quando começam a ser
censuradas de forma injusta, são muito vulneráveis. Por outro lado, são
frequentemente pessoas muito honestas e algo ingénuas. Portanto, quando lhes
pedem coisas que vão contra as regras da profissão, contra a lei e os
regulamentos, contra o código do trabalho, recusam-se a fazê-las. Por exemplo,
recusam-se a assinar um balanço contabilista manipulado. E em vez de ficarem
caladas, dizem-no bem alto. Os colegas não dizem nada, já perceberam há muito
tempo como as coisas funcionam na empresa, já há muito que desviaram o olhar.
Toda a gente é cúmplice. Mas o tipo empenhado, honesto e algo ingénuo continua
a falar. Não devia ter insistido. E como falou à frente de todos, torna-se um
alvo. O chefe vai mostrar a todos quão impensável é dizer abertamente coisas
que não devem aparecer nos relatórios de actividade.
Um único caso de assédio tem um
efeito extremamente potente sobre toda a comunidade de uma empresa. Uma mulher
está a ser assediada e vai ser destruída, uma situação de uma total injustiça;
ninguém se mexe, mas todos ficam ainda com mais medo do que antes. O medo
instala-se. Com um único assédio, consegue-se dominar o colectivo de trabalho
todo. Por isso, é importante, ao contrário do que se diz, que o assédio seja
bem visível para todos. Há técnicas que são ensinadas, que fazem parte da
formação em matéria de assédio, com psicólogos a fazer essa formação.
Uma formação
para o assédio?
Exactamente. Há estágios para
aprenderem essas técnicas. Posso contar, por exemplo, o caso de um estágio de
formação em França em que, no início, cada um dos 15 participantes, todos eles
quadros superiores, recebeu um gatinho. O estágio durou uma semana e, durante
essa semana, cada participante tinha de tomar conta do seu gatinho. Como é
óbvio, as pessoas afeiçoaram-se ao seu gato, cada um falava do seu gato durante
as reuniões, etc.. E, no fim do estágio, o director do estágio deu a todos a
ordem de… matar o seu gato.
Está a
descrever um cenário totalmente nazi...
Só que aqui ninguém estava a
apontar uma espingarda à cabeça de ninguém para o obrigar a matar o gato. Seja
como for, um dos participantes, uma mulher, adoeceu. Teve uma descompensação
aguda e eu tive de tratá-la – foi assim que soube do caso. Mas os outros 14
mataram os seus gatos. O estágio era para aprender a ser impiedoso, uma
aprendizagem do assédio. Penso que há bastantes empresas que recorrem a este
tipo de formação – muitas empresas cujos quadros, responsáveis de recursos
humanos, etc., são ensinados a comportar-se dessa maneira.
Voltando ao
perfil do assediado, é perigoso acreditar realmente no seu trabalho?
É. O que vemos é que, hoje em
dia, envolver-se demasiado no seu trabalho representa um verdadeiro perigo.
Mas, ao mesmo tempo, não pode haver inteligência no trabalho sem envolvimento
pessoal – sem um envolvimento total.
Isso gera, aliás, um dilema
terrível, nomeadamente em relação aos nossos filhos. As pessoas suicidam-se no
trabalho, portanto não podemos dizer aos nossos filhos, como os nossos pais nos
disseram a nós, que é graças ao trabalho que nos podemos emancipar e
realizar-nos pessoalmente. Hoje, vemo-nos obrigados a dizer aos nossos filhos
que é preciso trabalhar, mas não muito. É uma mensagem totalmente
contraditória.
E os
sindicatos?
Penso que os sindicatos foram em
parte destruídos pela evolução da organização do trabalho. Não se opuseram à
introdução dos novos métodos de avaliação. Mesmo os trabalhadores
sindicalizados viram-se presos numa dinâmica em que aceitaram compromissos com
a direcção. Em França, a sindicalização diminuiu imenso – as pessoas já não
acreditam nos sindicatos porque conhecem as suas práticas desleais.
Como
distinguir um suicídio ligado ao trabalho de um suicídio devido a outras
causas?
É uma pergunta à qual nem sempre
é possível responder. Hoje em dia, não somos capazes de esclarecer todos os
suicídios no trabalho. Mas há casos em que é indiscutível que o que está em
causa é o trabalho. Quando as pessoas se matam no local de trabalho, não há
dúvida de que o trabalho está em causa. Quando o suicídio acontece fora do
local de trabalho e a pessoa deixa cartas, um diário, onde explica por que se
suicida, também não há dúvidas – são documentos aterradores. Mas quando as
pessoas se suicidam fora do local do trabalho e não deixam uma nota, é muito
complicado fazer a distinção. Porém, às vezes é possível. Um caso recente – e
uma das minhas vitórias pessoais – foi julgado antes do Natal, em Paris. Foi um
processo bastante longo contra a Renault por causa do suicídio de vários
engenheiros e cientistas altamente qualificados que trabalhavam na concepção
dos veículos, num centro de pesquisas da empresa em Guyancourt, perto de Paris.
Quando é que
isso aconteceu?
Em 2006-2007. Houve cinco
suicídios consecutivos; quatro atiraram-se do topo de umas escadas interiores,
do quinto andar, à frente dos colegas, num local com muita passagem à hora do
almoço. Mas um deles – aliás de origem portuguesa – não se suicidou no local do
trabalho. Era muitíssimo utilizado pela Renault nas discussões e negociações
sobre novos modelos e produção de peças no Brasil. Foi utilizado, explorado de
forma aterradora. Pediam-lhe constantemente para ir ao Brasil e o homem estava
exausto por causa da diferença horária. Era uma pessoa totalmente dedicada,
tinha mesmo feito coisas sem ninguém lhe pedir, como traduzir documentos
técnicos para português, para tentar ganhar o mercado brasileiro para a
empresa. A dada altura, teve uma depressão bastante grave e acabou por se
suicidar.
A viúva processou a Renault, que
em Dezembro acabou por ser condenada por “falta imperdoável do empregador”
[conceito do direito da segurança social em França], por não ter tomado as
devidas precauções.
Foi um acontecimento importante
porque, pela primeira vez, uma grande multinacional foi condenada em virtude
das suas práticas inadmissíveis. Os advogados do trabalho apoiaram-se muito nos
resultados científicos do meu laboratório. O acórdão do tribunal tinha 25
páginas e as provas foram consideradas esmagadoras. Havia e-mails onde o
engenheiro dizia que já não aguentava mais – e que a empresa fez desaparecer
limpando o disco rígido do seu computador. Mas ele tinha cópias dos documentos
no seu computador de casa. A argumentação foi imparável. Mesmo assim, as
empresas continuam a dizer que os suicídios dos seus funcionários têm a ver com
a vida privada e não com o trabalho.
Toda a gente tem problemas
pessoais. Portanto, quando alguém diz que uma pessoa se suicidou por razões
pessoais, não está totalmente errado. Se procurarmos bem, vamos acabar por
encontrar, na maioria dos casos, sinais precursores, sinais de fragilidade. Há
quem já tenha estado doente, há quem tenha tido episódios depressivos no
passado. É preciso fazer uma investigação muito aprofundada.
Mas se a empresa pretender provar
que a crise depressiva de uma pessoa se deve a problemas pessoais, vai ter de
explicar por que é que, durante 10, 15, 20 anos, essa pessoa, apesar das suas
fragilidades, funcionou bem no trabalho e não adoeceu.
Mas como é
que o trabalho pode conduzir ao suicídio? Só acontece a pessoas com determinada
vulnerabilidade?
Só muito recentemente é que
percebi que uma pessoa podia ser levada ao suicídio sem que tivesse até ali
apresentado qualquer sinal de vulnerabilidade psicopatológica. Fiquei
extremamente surpreendido com um caso em especial, do qual não posso falar
muito aqui, porque ainda não foi julgado, de uma mulher que se suicidou na
sequência de um assédio no trabalho.
A Polícia Judiciária [francesa]
tinha interrogado os seus colegas de trabalho e, como a ordem vinha de um juiz,
as pessoas falaram. Foram 40 depoimentos que descreviam a maneira como essa
mulher tinha sido tratada pelo patrão (apenas uma contradiz as restantes 39). E
o que emerge é que, devido ao assédio, ela caiu num estado psicopatológico
muito parecido com um acesso de melancolia.
Ora, o que mais me espantou,
quando procurei sinais precursores, é que não encontrei absolutamente nada. E,
pela primeira vez, comecei a pensar que, em certas situações, quando uma pessoa
que não é melancólica é escolhida como alvo de assédio, é possível fabricar,
desencadear, uma verdadeira depressão em tudo igual à melancolia. Quando essa
pessoa se vai abaixo, tem uma depressão, autodesvaloriza-se, torna-se
pessimista, pensa que não vale nada, que merece realmente morrer.
Era uma mulher hiperbrilhante,
muitíssimo apreciada, muito envolvida, imaginativa, produtiva. Tinha duas crianças
óptimas e um marido excepcional. Falei com os seus amigos, o marido, a mãe. Não
encontrei nenhum sinal precursor, nem sequer na sua infância.
Aconteceu
sem pré-aviso?
Houve um período crítico que terá
durado um mês. As pessoas à sua volta deram por isso. Viram que ela estava
muito mal, o médico do trabalho foi avisado e obrigou-a a parar de trabalhar e
pediu a alguém que a levasse para casa. Mas ela não queria parar, insistia que
queria fazer o que tinha a fazer. A família também percebeu que algo estava a
acontecer, ela consultou um psiquiatra, mas é impossível travar este tipo de
descompensação. Foi para casa da mãe, mas quando pensaram que estava a melhorar
um pouco, relaxaram a vigilância e ela atirou-se pela janela.
Nos testemunhos recolhidos pela
polícia, vê-se claramente que ninguém se atreveu a ajudá-la; todos dizem que
tinham medo. Tinham medo do patrão, que era um tirano. Também assediava
sexualmente as mulheres e esta mulher era muito bonita. Não consegui saber se
tinha havido assédio sexual, mas várias pessoas evocam no seu depoimento que
ela terá caído em desgraça porque se tinha recusado a fazer o que ele queria. O
caso da France Télécom foi muito mediático, com 25 suicídios. O suicídio é mais
frequente nas grandes empresas?
Não. Nas grandes empresas pode
ser mais visível, mas há também muitas pequenas empresas onde as coisas correm
muito mal, onde os critérios são incrivelmente arbitrários e onde o assédio
pode ser pior. Nas grandes empresas, subsiste por vezes uma presença sindical que
faz com que os casos venham a público. Foi assim na France Télécom. Mas não
acredito que a destruição actual do mundo do trabalho esteja a acontecer apenas
nalgumas grandes multinacionais. E é importante salientar que também há
multinacionais onde as coisas correm bem.
Quantas
pessoas se suicidam por ano, em França e noutros países?
Não há estatísticas do suicídio
no trabalho. Em França, foi constituída uma comissão ministerial onde pela
primeira vez foi dito claramente que é urgente aplicar ferramentas que permitam
analisar a relação entre suicídio e trabalho. Mas, por enquanto, isso não
existe. Nem na Bélgica, nem no Canadá, nem nos Estados Unidos, não existe em
sítio nenhum.
Na Suécia, por exemplo, há
provavelmente tantos suicídios no trabalho como em França. Mas não há debate.
Em muitos países não há debate, porque não existe esse espaço clínico, essa
nova medicina do trabalho que estamos a desenvolver em França. De facto, a
França é dos sítios onde mais se fala do assunto. O debate francês interessa muita
gente, mas também mete muito medo.
Em França, foi feito um único
inquérito, há quatro anos, pela Inspecção Médica do Trabalho, em três
departamentos [divisões administrativas], passando pelos médicos do trabalho, e
chegaram a um total de 50 suicídios em cinco anos. É provavelmente um valor
subestimado, mas, extrapolando-o a todos os departamentos, dá entre 300 e 400
suicídios no trabalho por ano.
Falou de
“qualidade total”. O que é exactamente?
É uma segunda medida que foi
introduzida na sequência da avaliação individual. Acontece que, quando se faz a
avaliação individual do desempenho, está-se a querer avaliar algo, o trabalho,
que não é possível avaliar de forma quantitativa, objectiva, através de
medições. Portanto, o que está a ser medido na avaliação não é o trabalho. No
melhor dos casos, está-se a medir o resultado do trabalho. Mas isso não é a
mesma coisa. Não existe uma relação de proporcionalidade entre o trabalho e o
resultado do trabalho.
É como se em vez de olhar para o
conteúdo dos artigos de um jornalista, apenas se contasse o número de artigos
que esse jornalista escreveu. Há quem escreva artigos todos os dias, mas
enfim... é para contar que houve um acidente de viação ou outra coisa qualquer.
Uma única entrevista, como esta por exemplo, demora muito mais tempo a escrever
e, para fazer as coisas seriamente, vai implicar que o jornalista escreva
entretanto menos artigos. Hoje em dia, julga-se os cientistas pelo número de
artigos que publicam. Mas isso não reflecte o trabalho do cientista, que talvez
esteja a fazer um trabalho difícil e não tenha publicado durante vários anos
porque não conseguiu obter resultados.
Passados uns tempos, surgem
queixas a dizer que a qualidade [da produção ou do serviço] está a degradar-se.
Então, para além das avaliações, os gestores começam a controlar a qualidade e
declaram como objectivo a “qualidade total”. Não conhecem os ofícios, mas vão
definir pontos de controlo da qualidade. É verdadeiramente alucinante.
Para além de que declarar a
qualidade total é catastrófico, justamente porque a qualidade total é um ideal.
É importante ter o ideal da qualidade total, ter o ideal do “zero-defeitos”, do
“zero-acidentes”, mas apenas como ideal. Em diabetologia, por exemplo, os
gestores introduziram a obrigação de os médicos fazerem, para cada um dos seus
doentes, ao longo de três meses, a média dos níveis de hemoglobina glicosilada
A1c [ri-se], que é um indicador da concentração de açúcar no sangue. A seguir,
comparam entre si os grupos de doentes de cada médico – é assim que controlam a
qualidade dos cuidados médicos. [ri-se].
Só que, na realidade, quando
tratamos um doente, às vezes o tratamento não funciona e temos de perceber
porquê. E finalmente, o doente acaba por nos confessar que não consegue
respeitar o regime alimentar que lhe prescrevemos, porque inclui legumes e não
féculas e que os legumes são mais caros... Tem três filhos e não tem dinheiro
para legumes. E então, vamos ter de encontrar um compromisso.
Da mesma forma, se um doente
diabético é engenheiro e tem de viajar frequentemente para outros fusos
horários, torna-se muito difícil controlar a sua glicemia com insulina. Mais
uma vez, vai ser preciso encontrar um meio-termo. E isso é difícil.
Mesmo uma central nuclear nunca
funciona como previsto. Nunca. Por isso é que precisamos de “trabalho vivo”. A
qualidade total é um contra-senso porque a realidade se encarrega de fazer com
que as coisas não funcionem de forma ideal. Mas o gestor não quer ouvir falar
disso.
Ora, quando o ideal se transforma
na condição para obter uma certificação, o que acontece é que se está a obrigar
toda a gente a dissimular o que realmente se passa no trabalho. Deixa de ser
possível falar do que não funciona, das dificuldades encontradas. Quando há um
incidente numa central nuclear, o melhor é não dizer nada.
Isso é
extremamente grave.
É. E em medicina passa-se a mesma
coisa. Faz-se batota. Hoje, existem nos hospitais as chamadas “conferências de
consenso” – acho que existem em toda a Europa – onde são feitas recomendações
precisas para o tratamento de tal ou tal doença. E quando um médico recebe um
doente, tem de teclar no computador para ver o que foi estabelecido pela
conferência de consenso. O médico, que tem o doente à sua frente, pensa que
essa não é a boa abordagem – porque sabe que o doente tem problemas com a
mulher, com os filhos e não vai conseguir fazer o tratamento recomendado. Mas
sabe também que se não fizer o que está lá escrito, e se por acaso as coisas
derem para o torto, poderá haver um inquérito, a pedido da família ou de um
gestor, e vão dizer que foi o médico que não fez o que devia. O problema da
qualidade total é que obriga muitos de nós a viver essa experiência atroz que
consiste em fazer o nosso trabalho de uma forma que nos envergonha.
Há muitos
suicídios entre os médicos?
Cada vez mais. Há especialidades
com mais suicídios do que outras – nomeadamente entre os médicos reanimadores.
Em França é uma verdadeira hecatombe: é sabido que a profissão de
anestesista-reanimador é das que têm maior taxa de suicídios. Nesta
especialidade, os riscos de ser-se atacado em tribunal porque alguém morreu são
tão elevados que os médicos se protegem seguindo as instruções. Mesmo que
tenham a íntima convicção de que não era isso que deveriam fazer. Chegámos a
esse ponto.
É uma situação insuportável e há
médicos que não aguentam ver um doente morrer porque tiveram medo de que isso
se virasse contra eles. “Fiz o que estava escrito e o doente morreu. Matei o
doente.” Há cada vez mais reanimadores que se confrontam com esta situação.
Ainda por cima os cirurgiões atiram sempre as dificuldades que encontram nas
operações para cima do reanimador. Sempre. Cada vez que acontece qualquer
coisa, é porque o anestesista não adormeceu bem o doente, ou não o acordou
correctamente, ou não soube restabelecer a pressão arterial. O cirurgião nunca
admitirá que falhou nas suturas e que por isso o doente se esvaiu em sangue.Os
médicos sempre foram considerados uma classe muito solidária…
Foram. Já não são. Eu trabalhei
anos nos hospitais, e adorava trabalhar lá, porque existia um espírito de
equipa fantástico. Éramos felizes no nosso trabalho. Hoje, as pessoas não
querem trabalhar nos hospitais, não querem fazer bancos, tentam safar-se. São
todos contra todos. Bastaram uns anos para destruir a solidariedade no
hospital. O que aconteceu é aterrador.
O que é importante perceber é que
a destruição dos elos sociais no trabalho pelos gestores nos fragiliza a todos
perante a doença mental. E é por isso que as pessoas se suicidam. Não quer
dizer que o sofrimento seja maior do que no passado; são as nossas defesas que
deixaram de funcionar.
Portanto, as ferramentas de
gestão são na realidade ferramentas de repressão, de dominação pelo medo.
Sim, o termo exacto é dominação;
são técnicas de dominação.
Então, é
preciso acabar com essas práticas?
Eu não diria que é preciso acabar
com tudo. Acho que não devemos renunciar à avaliação, incluindo a individual.
Mas é preciso renunciar a certas técnicas. Em particular, tudo o que é
quantitativo e objectivo é falso e é preciso acabar com isso. Mas há avaliações
que não são quantitativas e objectivas – a avaliação dos pares, da
colectividade, a avaliação da beleza, da elegância de um trabalho, do facto de
ser conforme às regras profissionais. Trata-se de avaliações assentes na
qualidade e no desempenho do ofício. Mesmo a entrevista de avaliação pode ser
interessante e as pessoas não são contra.
Mas sobretudo, a avaliação não
deve ser apenas individual. É extremamente importante começar a concentrar os
esforços na avaliação do trabalho colectivo e nomeadamente da cooperação, do
contributo de cada um. Mas como não sabemos analisar a cooperação, analisa-se
somente o desempenho individual.
O resultado é desastroso. Não é
verdade que a qualidade da produção melhorou. A General Motors foi obrigada a
alertar o mundo da má qualidade dos seus pneus; a Toyota teve de trocar um
milhão de veículos por veículos novos ou reembolsar os clientes porque
descobriu um defeito de fabrico. É essa a qualidade total japonesa?
Hoje, nos hospitais em França, a
qualidade do trabalho não aumentou – diminui. O desempenho supostamente
melhorou, mas isso não é verdade, porque não se toma em conta o que está a
acontecer do lado do trabalho colectivo.
Temos de aprender a pensar o
trabalho colectivo, de desenvolver métodos para o analisar, avaliar – para o
cultivar. A riqueza do trabalho está aí, no trabalho colectivo como cooperação,
como maneira de viver juntos. Se conseguirmos salvar isso no trabalho, ficamos
com o melhor, aprendemos a respeitar os outros, a evitar a violência,
aprendemos a falar, a defender o nosso ponto de vista e a ouvir o dos outros.
Não haverá
por detrás desta nova organização do trabalho objectivos de controlo das
pessoas, de redução da liberdade individual, que extravasam o âmbito
empresarial?
É uma questão difícil. Acho que
qualquer método de organização do trabalho é ao mesmo tempo um método de
dominação. Não é possível dissociar as duas coisas. Há 40 anos que os
sociólogos trabalham nisto. Todos os métodos de organização do trabalho visam
uma divisão das tarefas, por razões técnicas, de racionalidade, de gestão. Mas
não há nenhuma divisão técnica do trabalho que não venha acompanhada de um
sistema de controlo, em virtude do qual as pessoas vão cumprir as ordens.Há
tecnologias da dominação. O sistema de Taylor, ou taylorismo, é essencialmente
um método de dominação e não um método de trabalho. O método de Ford é um
método de trabalho.
Contudo, não penso que a intenção
do patronato (francês, em particular), nem dos homens de Estado seja instaurar
o totalitarismo. Mas é indubitável que introduzem métodos de dominação, através
da organização do trabalho que, de facto, destroem o mundo social.
Qual é a
diferença entre taylorismo e fordismo?
Taylor inventou a divisão das
tarefas entre as pessoas e a interposição, entre cada tarefa, de uma
intervenção da direcção, através de um capataz. Há constantemente alguém a
vigiar e a exigir obediência ao trabalhador. A palavra-chave é obediência.
“Quando eu disser para parar de trabalhar e ir comer qualquer coisa, você vai
obedecer. Se concordar, será pago mais 50 cêntimos pela sua obediência.” A
única coisa que importa é a obediência. O objectivo é acabar com o ócio, os
tempos mortos.
Só muito mais tarde é que Ford
introduziu uma nova técnica, a linha de montagem, que é uma aplicação do
taylorismo. Na realidade, não é o progresso tecnológico que determina a
transformação das relações sociais, mas a transformação das relações de
dominação que abre o caminho a novas tecnologias.
O toyotismo [ou Sistema Toyota de
Produção] utiliza um outro método de dominação, o ohnismo [inventado por
Taiichi Ohno (1912-1990)], diferente do taylorismo. É um método particular que
extrai a inteligência das pessoas de uma forma muito mais subtil que o taylorismo,
que apenas estipula que há pessoas que têm de obedecer e outras que mandam.
No ohnismo, trata-se de fazer com
que pessoas beneficiem a empresa oferecendo a sua inteligência e os
conhecimentos adquiridos através da experiência. Para o fazer, nos anos 1980,
introduziu-se algo de totalmente novo: os chamados “círculos de qualidade”.
O sistema japonês foi realmente
uma novidade em relação ao taylorismo, porque ensinou as pessoas a colaborar
sem as obrigar a obedecer – dando-lhes prémios, pelo contrário. Quando uma
sugestão de uma pessoa dá lucro, a empresa faz o cálculo do dinheiro que a
empresa ganhou com a ideia e reverte para o trabalhador uma parte desse lucro.
Trata-se de prémios substanciais.
Mas há uma batota: os círculos de
qualidade podiam durar horas, todos os dias, reunindo as pessoas a seguir ao
trabalho para alimentar a caixinha das ideias. Todos se envolviam porque, por
um lado, uma ideia que permitisse melhorar a produção valia-lhes chorudos
prémios, mas também porque quem participava neles tinha um emprego vitalício
garantido na empresa.
O sistema foi exportado para a
Europa, os EUA, etc. porque durante uns tempos, a qualidade melhorou de facto.
Mas a dada altura, as pessoas no Japão trabalhavam tanto que começou a haver
mortes por kar?shi [literalmente “morte por excesso de trabalho”].
O que é o
kar?shi?
É uma morte súbita, geralmente
por hemorragia cerebral (AVC), de pessoas novas que não apresentam qualquer
factor de risco cardiovascular. Não são obesos, não sofrem de hipertensão, não
têm níveis de colesterol elevados, não são diabéticos, não fumam, não são
alcoólicos, não tem uma história familiar de AVC. Nada. A único factor que é
possível detectar é o excesso de trabalho. Estas pessoas trabalham mais de 70
horas por semana, sem contar as horas passadas nos círculos de qualidade. Ou
seja, são pessoas que estão literalmente sempre a trabalhar. Mal param de
trabalhar, vão dormir. As descrições de colegas que foram fazer inquéritos no
Japão são aterrorizadoras.O mundo do trabalho no Japão é alucinante. Há
raparigas que entram nas fábricas de electrónica, por exemplo, e que são
utilizadas entre os 18 e os 21 anos – porque aos 21 anos, já não conseguem
aguentar as cadências de trabalho.
As famílias confiam-nas às
empresas por esses três anos, durante os quais elas se entregam de corpo e alma
ao trabalho. E nalguns casos, a empresa compromete-se a casar a rapariga no fim
dos três anos. É mesmo um sistema totalitário. E mais: essas jovens trabalham
12 a 14 horas por dia e depois vão para uns dormitórios onde há uma série de
gavetões – cada um com cama e um colchão –, deitam-se na cama e fecha-se o
gavetão. Dormem assim, empilhadas em gavetões. Três anos… em gavetões… é
preciso ver para crer.
Mas uma
coisa destas não é aplicável na Europa
Não, pelo menos em França nunca
funcionaria. Ainda não chegámos lá, disso tenho a certeza.
Mas acha que
poderia acontecer?
Sim, acho que poderíamos lá
chegar. Tudo é possível. Mas ao contrário do que se diz, não há uma fatalidade,
não é a mundialização que determina as coisas, não é a guerra económica. É
perfeitamente possível, no contexto actual, trabalhar de outra maneira, e há
empresas que o fazem, com uma verdadeira preocupação de preservar o “viver
juntos”, para tentar encontrar alternativas à abordagem puramente de gestão. O
que não impede que a tendência seja para a desestruturação um pouco por todo o
lado. É difícil resistir-lhe.
Uma empresa que defendesse os
princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade conseguiria sobreviver
no actual contexto de mercado?
Hoje, estou em condições de
responder pela afirmativa, porque tenho trabalhado com algumas empresas assim.
Ao contrário do que se pensa, certas empresas e alguns patrões não participam
do cinismo geral e pensam que a empresa não é só uma máquina de produzir e de
ganhar dinheiro, mas também que há qualquer coisa de nobre na produção, que não
pode ser posta de lado. Um exemplo fácil de perceber são os serviços públicos,
cuja ética é permitir que os pobres sejam tão bem servidos como os ricos – que
tenham aquecimento, telefone, electricidade. É possível, portanto, trabalhar no
sentido da igualdade.
Há também muita gente que acha
que produz coisas boas – os aviões, por exemplo, são coisas belas, são um
sucesso tecnológico, podem progredir no sentido da protecção do ambiente. O
lucro não é a única preocupação destas pessoas.
E, entre os empresários, há
pessoas assim – não muitas, mas há. Pessoas muito instruídas que respeitam esse
aspecto nobre. E, na sequência das histórias de suicídios, alguns desses
empresários vieram ter comigo porque queriam repensar a avaliação do
desempenho. Comecei a trabalhar com eles e está a dar resultados positivos.
O que
fizeram?
Abandonaram a avaliação
individual – aliás, esses patrões estavam totalmente fartos dela. Durante um
encontro que tive com o presidente de uma das empresas, ele confessou-me, após
um longo momento de reflexão, que o que mais odiava no seu trabalho era ter de
fazer a avaliação dos seus subordinados e que essa era a altura mais infernal
do ano. Surpreendente, não? E a razão que me deu foi que a avaliação individual
não ajuda a resolver os problemas da empresa. Pelo contrário, agrava as coisas.
Neste caso, trata-se de uma pequena empresa privada que se preocupa com a
qualidade da sua produção e não apenas por razões monetárias, mas por questões
de bem-estar e convivialidade do consumidor final. O resultado é que pensar em
termos de convivialidade faz melhorar a qualidade da produção e fará com que a
empresa seja escolhida pelos clientes face a outras do mesmo ramo.
Para o conseguir, foi preciso que
existisse cooperação dentro da empresa, sinergias entre as pessoas e que os
pontos de vista contraditórios pudessem ser discutidos. E isso só é possível
num ambiente de confiança mútua, de lealdade, onde ninguém tem medo de arriscar
falar alto.
Se conseguirmos mostrar
cientificamente, numa ou duas empresas com grande visibilidade, que este tipo
de organização do trabalho funciona, teremos dado um grande passo em frente.
Agradecimento:
internauta Andrea Natrielli pela indicação do link
Nenhum comentário:
Postar um comentário